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9 de fev. de 2014

Diário de Viagem | Chapada Diamantina - Parte 2: Vale do Pati

Entre as coisas mais bonitas que aprendi nos últimos tempos está a descoberta de que o Velho Chico não é o único elo geográfico entre Minas e o Nordeste. Descobri (ou talvez só lembrei, sei lá) que há também o prolongamento da cadeia do Espinhaço subindo Bahia afora. O Espinhaço, aquele mesmo que se espalha pelas Minas Gerais, que é Serra do Cipó, é Canastra, é Itacolomi, é Serra do Caraça e também é Diamantina, a mineira. De um lado a “minha” Diamantina, do outro a baiana Chapada Diamantina. Histórias parecidas, nomes originados do garimpo de diamantes, separadas, e ao mesmo tempo unidas pelo Espinhaço.

Em toda a sua extensão, o Espinhaço recebe denominações locais e na Bahia um dos trechos mais importantes é a Serra do Sincorá, que se localiza quase integralmente dentro do Parque Nacional da Chapada Diamantina, e também abriga o Vale do Pati.

Assim como tantos outros trechos do Espinhaço, o Pati é uma região de natureza exuberante e acesso difícil, cenário de um dos trekkings mais bonitos do Brasil. O garimpo frustrado deu lugar ao cultivo de café, por sua vez substituído pelo Turismo de base comunitária, que se mantém muito bem, seguindo os princípios da sustentabilidade sob o aspecto ambiental, econômico e social.

Conhecer o Vale do Pati tornou-se uma necessidade desde a primeira vez que ouvi falar dele. Longas caminhadas, belezas naturais, café e Turismo são motivos suficientes pra mim. Entendi que esse encontro de paixões era mais do que um convite e enfim chegou a hora de colocar a mochila nas costas e desbravar o Vale. E é só falar dele para o meu texto perder toda a cara de “acadêmico” e se transformar no relato apaixonado que se segue.

Uma vez escolhido o destino, de presente vieram o melhor guia e o melhor grupo. Dentre os vários roteiros possíveis, optamos pela travessia feita em 4 dias, acessando o Vale por Guiné, distrito de Mucugê e saindo pela cidade de Andaraí.

O primeiro trecho é feito de jeep, de Lençóis até Guiné, em aproximadamente 2 horas. Enquanto ajeitamos as mochilas e tentamos acordar os músculos com alongamentos, desce um grupo terminando a travessia. Visivelmente tão cansados quanto satisfeitos, e com aquela solidariedade que só se encontra na trilha, eles nos entregam seus cajados, desejando-nos sorte na caminhada. É como se recebêssemos a permissão e a bênção para entrar no Vale.

A trilha começa num “passadiço” de madeira e arame farpado, uma espécie de portal para o Pati.  E se antes de todo vale tem uma montanha, essa aqui assusta muito no primeiro contato; apesar da exuberância da Serra do Sincorá ali ao longe, a subida íngreme sob o sol de quase meio dia dá uma ideia do que a tarde nos reserva. Panturrilhas queimando, suor escorrendo e fôlego sumindo nos ensinam a primeira lição da travessia: é preciso obedecer o ritmo do corpo e parar sempre que necessário, para descanso e hidratação.

Nesse trecho, o sofrimento dura pouco e logo a subida dá lugar aos Gerais do Rio Preto, área plana de terreno arenoso, onde a vida triunfa em forma de vegetação, crescendo de novo numa área castigada por queimadas recentes. É lindo ver o milagre do verde ressurgindo em meio aos tocos esturricados pelo fogo. Cresce uma vegetação rasteira, às vezes pontilhada de orquídeas, bromélias e mucugês, que já até servem de esconderijo para a primeira cobra que cruza nosso caminho.

Mais ou menos duas horas após o início da caminhada e chegamos à beira de um riozinho de águas avermelhadas. Aí a alegria é coisa simples: tirar os pés de dentro das botas e beber água fresca, encantados com a quantidade de libélulas azuis que nos fazem companhia durante o primeiro piquenique. Temos sanduíches fresquinhos, frutas, queijo, pão, bolo... E a gente achando que trilha longa seria sinônimo de perrengue!

O pouco tempo já é suficiente pra perceber a sintonia do grupo. Paula e eu amamos as flores, que Rodrigo ajuda a enxergar e fotografar enquanto Karina, muito entendida de bichos e plantas, nos dá aulas a respeito da biodiversidade local, satisfazendo nossa curiosidade e fazendo de cada matinho um estudo de caso. Nosso guia é o Flor (de Florisvaldo), que desde o início se mostra um gentleman, revelando um profundo respeito pela natureza que nos recebe e orientando o grupo a respeitar o próprio corpo. Flor conhece o vale tão bem quanto a própria casa, e vai dividindo conosco as histórias desde o tempo do garimpo até a chegada do Turismo e as inúmeras travessias.

Enquanto a caminhada em terreno plano exige pouco esforço respiratório, conseguimos ir conversando e conhecendo-nos, e é aí que tenho certeza de que serei abençoada pelas boas companhias. Nas pausas silenciosas ao longo do caminho, deixo escapar uma ou outra lágrima, expressão de gratidão por ver cada detalhe se juntando para fazer o inesquecível. A sensação é de entrar em um santuário, e estar ao lado de pessoas com a mesma sensibilidade enriquece muito a experiência.

Desde os gerais já se vê ao longe o topo dos morros, mas é um pouco mais adiante que o Vale se descortina aos nossos olhos. Antes de chegar ao primeiro acampamento, a última parada é em cima de um platô, de onde a gente avista toda a imensidão do Vale à nossa frente, uma sobreposição de tons de verde, serpenteados por uma ou duas trilhazinhas. Ouço, impressionada o barulho do vento e acho mesmo que é ali que ele faz a curva. Divirto-me quando Karina me mostra a alegria das Andorinhas que se jogam eufóricas do platô para a imensidão.


Escolho meu cantinho para descanso e contemplação, e, na esperança de ver uma águia, passeio os olhos por cada paredão onde, dizem, estão seus ninhos. Não vejo águias, mas deixo os olhos vagarem pelos sulcos e elevações desse “oásis encravado entre montanhas”. Recostada na pedra, o tempo é suficiente até pra um cochilo, antes de começar a descida para, de fato, entrar no Vale. O momento é de tranquilidade quase absoluta, quebrada apenas pela pontinha de preocupação inevitável quando o guia me mostra umas miniaturas de casas brancas lááá embaixo, dizendo que aquele é nosso destino dessa tarde. “Deus meu!” – penso – “Como é que seres sem asas chegam àquele lugar?”.

E minha pergunta logo tem resposta: o caminho é quase um buraco, cuja entrada é camuflada pela vegetação na lateral do platô. Logo descubro que é impossível descer de pé; a trilha exige atenção e qualquer deslize pode provocar um tombo coletivo, tipo dominó. Mantendo a distância de segurança uns dos outros, sob a orientação cuidadosa de Flor e com o imprescindível apoio dos cajados, descemos parte do caminho de pé, apoiando em pedras e raízes das árvores, e em outra parte deslizamos sentados, mãos no chão e nas pedras, costas protegidas pela mochila. Ao final da trilha, diante do paredão por onde acabáramos de descer, um misto de espanto e incredulidade toma conta do grupo quando olhamos pra cima e enxergamos outro grupo no platô, pessoas do tamanho de formigas. A descida é insana! Chegamos imundos e suados, com terra até a raiz do cabelo, pernas trêmulas e emoção estampada nas carinhas de cansaço: estamos dentro do Vale do Pati! A partir daí, não adianta querer desistir: a única forma de sair dali sem ser movido pelas próprias pernas é no lombo de uma mula.


O pernoite será na “ruinha” ou “igrejinha”, como é chamada a estalagem onde o Sr. João Calixto mora sozinho e se sustenta tranquilamente com a renda gerada pelo turismo. Solidão não é problema pra ele, que vai frequentemente ao vilarejo de Guiné, buscar suprimentos para a casa e para abastecer a “venda”: chocolates, chinelos, sabonetes e até cerveja. E dificilmente João passa uma semana sem receber aventureiros na sua vilazinha, composta por construções rústicas de pau a pique: vários quartos, três banheiros e cozinha coletiva, além da capela do Senhor do Bonfim. “Missa? Não, tem não senhora, hoje em dia não tem mais; só quando passa algum padre fazendo a trilha”. A eletricidade chegou há uns dois anos, com a instalação das placas para captação de energia solar; tem luz em todos os cômodos, tomadas para recarregar as baterias das câmeras e, com um pouco de sorte, até um banho quente.

Não lamentei não ter tal sorte. O banho gelado foi um alívio para os músculos doloridos. O cansaço era tão grande quanto a fome e nós não conseguimos conter as exclamações quando o jantar foi servido: arroz, abóbora, salada, batatas assadas com queijo e manjericão, suco de maracujá e... picanha assada! Pois é. Tínhamos sido avisados sobre as habilidades culinárias do Flor, mas ninguém esperava um banquete. Tudo delicioso, gosto bom da mistura de temperos, carinho e da conversa animada, enquanto trocávamos as impressões sobre o dia. Para repor de vez as energias, só faltava o sono. E foi bem fácil dormir ao som do vento, agitando as folhas do Babaçu lá atrás da casa. 


Sem despertador nem sacrifício, acordamos pouco antes do Sol. Incrivelmente bem dispostos, mesmo com uma ou outra dorzinha muscular. A mesa posta para o café da manhã era um capricho: bolos, frutas frescas, banana assada, mel, leite, suco, pão quentinho preparado pelo Flor às 4:00 da manhã e, é claro, o maravilhoso café da Chapada!

Apressamo-nos em comer e alongar, para aproveitar o frescor da manhã no início da trilha. O segundo dia de Pati era reservado para o Morro do Castelo, meu fascínio e meu assombro desde a primeira descrição. Contaram-me sobre a subida muito puxada e sobre a travessia da gruta que há no topo, mas nenhum relato foi suficiente para preparar-me para as emoções desse dia.

Saindo da igrejinha, descobrimos que os primeiros 20 minutos de caminhada seriam penosos todos os dias, ainda mais nas subidas; os músculos das pernas queimam e é preciso reaprender a respirar. Depois da primeira meia hora as pernas entendem que foram feitas para caminhar e entram no modo automático, o que também acontece com a respiração. A subida é muito mais puxada do que tinham conseguido descrever, e em vários trechos torna-se escalaminhada; por vezes, é preciso mandar o cajado ir à frente para que as mãos se agarrem a raízes, pedras, troncos e o que mais houver pelo caminho.

As paradas são necessárias para admirar tanta beleza, para recuperar o fôlego e beber água, enquanto nos certificamos de que todo o grupo está bem. E continuamos subindo, abençoados pela sombra das árvores altas que aqui formam quase uma mata fechada. Até as samambaias têm tamanho de árvore e Karina me explica que elas normalmente são pioneiras na mata: de crescimento fácil e rápido, elas oferecem sombra para que outros tipos de vegetação se desenvolvam. Encontramos pequenos lagartos, uma infinidade de pássaros e por um longo trecho subimos ao som do canto metálico e desesperado de uma Araponga.

E o que já era puxado piora consideravelmente quando saímos da sombra e enfrentamos o calor do Sol a pino. À nossa frente, convidativo e imponente, está o Castelo, cujo topo parece inalcançável. Mas basta virar as costas para ele por uns instantes pra gente se dar conta de que a maior parte do desafio já ficou para trás. Ou para baixo, nesse caso.

É claro que fazemos muita festa quando enfim alcançamos a entrada da gruta. E a alegria é completa ao descobrir que logo ali na escuridão da entrada há uma fonte de água gelada, presente pra esses caminhantes já secos e empoeirados. Paramos para abastecer cantis e garrafas, e aproveito o escurinho para chorar sem ser notada, deixando que as lágrimas se misturem ao suor enquanto agradeço ao Criador por tantos milagres vividos em tão pouco tempo. Sinto-me a mais privilegiada das criaturas. O Senhor pensou mesmo em tudo: até água gelada tem! O que mais eu poderia querer?

Mas ainda não acabou. A travessia da gruta escura é feita em poucos minutos e depois é preciso usar um pouco mais das habilidades recém-adquiridas para se espremer em passagens estreitas e escalar as últimas pedras até alcançar o topo. Aí é o êxtase do espetáculo! Lá em cima, com a brisa fresca aliviando o calor, a gente tem 360° de exuberância, fica besta, sem saber pra onde olhar. A imensidão do vale, os cânions ao longe, a decolagem das andorinhas, rios, cachoeiras... Aos poucos, a euforia cede à contemplação e às reflexões solitárias, quebradas às vezes pelas exclamações e pelo barulho do vento. E me sinto mesmo meio realeza, tendo a oportunidade de compartilhar um lanche maravilhoso com as melhores companhias no topo do Castelo. Nem posso lamentar por não ter encontrado o príncipe. 

 Depois de comer, descansar e deixar que os olhos aproveitem o presente da vista, a gente começa a sofrer pensando na volta. Só subimos cerca de 3 quilômetros e, já que para baixo todo santo ajuda, descer deveria ser fácil. Seria se ainda tivéssemos joelhos inteiros. É na descida que a gente nota que em inúmeros trechos a trilha beira o precipício e é tão estreita que não cabe nem um pé e o cajado juntos. Passáramos por ali na subida, mas motivados pelo topo, nem percebemos os perigos. Como não deve haver espaço para passos falsos ou cambaleios, fizemos quase todo o trajeto em silêncio, cada um concentrado nas próprias pernas e sob o olhar atento do guia, dando dicas onde era preciso.  Meus dois escorregões teriam sido tombos muito feios, não fossem os pés e mãos do Flor sempre à minha frente, servindo de freio. Já as pequenas quedas de bunda no chão são inevitáveis e incontáveis.

Terminada a tensão da descida, os músculos agradecem muito pelo banho rápido nas águas geladas do riozinho. Não pudemos demorar, porque era preciso aproveitar o restinho de luz do dia pra chegar á Igrejinha. Faltavam poucos metros, e parte do grupo já abria a porteira do acampamento enquanto eu, ainda longe, não conseguia desgrudar os olhos dos tons de dourado que os últimos raios de Sol davam aos paredões que deixávamos para trás.



Nessa noite, uma música da pior qualidade e os sucessivos ataques de histeria de duas patricinhas recém-chegadas e desambientadas ameaçaram perturbar a tranquilidade do acampamento. Mas seria necessário muito mais do que isso para estragar a perfeição desse dia.

De banho tomado e muito bem alimentados, ainda em grupo trocamos umas impressões e fizemos planos para o dia seguinte, enquanto tomávamos chá quentinho de ervas frescas. Já estava mais do que satisfeita, mas não pude deixar de me encantar com a Lua Cheia iluminando os morros ao redor da vilazinha; o coração quis ficar para ver mais desse espetáculo, mas o corpo, exausto, já não atenderia mais nenhum desejo que fosse diferente de se jogar naquele colchão e render-se ao sono. E todo mundo quis a mesma coisa.


A recuperação das energias consumidas pelo Castelo exigiu um tempo maior de repouso, e já passava das 09:00 horas quando nos despedimos do João e deixamos a Igrejinha rumo ao último acampamento, onde chegaríamos ao final da tarde.

Durante toda a manhã, caminhamos seguindo o leito do Rio Funis, ora pela margem, ora pelo leito. É tempo de seca em toda a Chapada, e se por um lado alguns cartões postais do Pati, como o Cachoeirão, ficam sem água nenhuma, por outro lado, fica mais fácil saltar de pedra em pedra no leito dos rios, sem corredeiras para enfrentar. Com poucas exceções, a trilha do dia não apresenta grandes dificuldades. O desafio seria mesmo a lonjura.

Depois da Cachoeira dos Funis, seguimos rumo à Prefeitura. O lugar tem esse nome porque na época do boom da produção cafeeira no Pati, era ali que funcionavam o armazém de gêneros, o posto de correios e o centro de reuniões, além de uma unidade da prefeitura de Andaraí; era a representação do poder público no Vale. Hoje, assim como quase todas as outras casas da região, a Prefeitura é ponto de apoio e acampamento para os trilheiros. E é um dos poucos lugares do Vale onde há uma geladeira a gás, garantia da Coca-cola gelada que foi motivo de alegria até para nós, os avessos a refrigerantes. O calor do Vale faz cada coisa...

Foi também dali que vimos, de baixo, toda a imponência do Morro do Castelo. Dá pra ver as torres, as formas arredondadas e entender a origem do nome. É na despedida que o Castelo mais me impressiona, e custo a crer que no dia anterior eu estava lá em cima; agora, olhando pra ele, me dou conta do quanto sou pequena.

Caminhamos sob Sol forte durante todo o dia, mas quando a calor apertava, era só largar roupas e mochilas nalguma pedra e desfrutar de um banho de rio. A pausa mais longa, que também serviu para lanche, foi no Poço da Árvore, distante cerca de meia hora da Prefeitura. O lugar é lindo, tem uma enorme piscina, uma série de pequenas quedas dágua e pedras grandes e lisas, onde o grupo aproveitou para lagartear e tirar um cochilo.

Sentada na pedra distante, aproveitei o tempo para relaxar os músculos das costas e ombros com uma massagem de cachoeira, enquanto me encantava com as miniorquídeas amarelas pendendo em grandes cachos do outro lado do poço.


Dentro do Vale o Sol desaparece mais cedo, e precisaríamos apertar o passo para chegar ainda com luz do dia à casa de Sr. Jóia e D. Leu, nosso último acampamento. Em todo o Vale, pé de jaca parece mato, mas nesse último trecho é exagerado; é bonito ver aquela fruta exibida, quase desproporcional e pesada, que insiste em pender dos troncos. É também nessa parte do caminho que há maior incidência de orquídeas, principalmente brancas e roxas, se exibindo às margens da trilha. Foi por ali também que parte do grupo parou pra tentar resgatar uma Jibóia agonizante, vítima da crueldade humana.

Com tanta distração, já era quase noite quando conseguimos atravessar o Rio Pati e completar o percurso na escuridão, dividindo nossas lanternas. Meia hora depois, o latido dos cachorros anunciou nossa chegada. Ainda bem! Porque agora a escuridão era causada também por uma formação de tempestade, acompanhada de ventania e pingos grossos.

A casa fica bem de frente para o paredão da Ladeira do Império, que já sabíamos, era nossa única opção de caminho para deixar o Vale, no dia seguinte. Eu ainda não conseguia imaginar como seria possível haver uma trilha vertical naquele gigante, mas não quis antecipar o sofrimento. Nessa noite, éramos os únicos hóspedes do anexo, uma casa simples, com sala, quatro quartos e um banheiro. Luz só na sala e banho gelado. Nesse cansaço, quem se importa?

Foi na sala de chão batido da casa de D. Leu que nos convencemos de que o povo do Pati realmente tem prazer em receber e ama uma mesa farta. O jantar foi um presente para os sentidos, comida caseira, aipim, abóbora, galinha caipira, feijão tropeiro, saladas, cortado de palma e doces de sobremesa... Variedade e quantidades suficientes para um batalhão. Nem com nossos melhores esforços, conseguimos esgotar a fartura da mesa, e o mesmo aconteceria no café da manhã seguinte.

Foi ali também que ouvimos uma história bonita, de um amor entre um francês e uma brasileira que se conheceram no Vale. Sr. Jóia e D. Leu certamente teriam outros causos pra contar, mas o bando de aventureiros moídos só queria saber de cama. Os quartos sem luz, com frestas para todos os lados e infinitas entradas para pequenos bichos nos deixaram dúvidas sobre a tranquilidade do sono, principalmente depois de uma conversa sobre aranhas armadeiras.

Devo ter dormido por pouco mais de duas horas, quando acordei com barulho do que eu não sabia se era vento ou chuva, e eu só conseguia pensar no que seria a subida da Ladeira do Império caso aquela barulhada toda fosse mesmo uma tempestade. Ao mesmo tempo assombrada e excitada pelas possibilidades do dia seguinte, passei a madrugada em claro, sem coragem de ir lá fora descobrir a razão de tanto barulho. Quando finalmente peguei no sono, era quase hora de levantar.


Karina foi a primeira a ir lá fora, e voltou dizendo: “acordamos dentro da nuvem!”. Entendi a expressão quando abri a porta e dei de cara com a neblina descendo desde o Império até nosso quintal. Não sei ao certo quanto tinha chovido, mas fora suficiente para o dia amanhecer nublado e o chão escorregadio, fazendo todo mundo patinar na terra batida entre o anexo e a casa principal, onde tomamos café da manhã, agradecemos e nos despedimos de nossos anfitriões.

De saída, nosso primeiro desafio foi atravessar a pontezinha de madeira sobre o leito pedregoso do Rio Pati; foi logo na entrada da ponte que tomei o tombo do dia, esfolando a perna numa pedra, apesar da proteção da calça. Minha cabeça não conseguiu processar o episódio narrado pelo Flor, que disse já ter atravessado o rio com um grupo utilizando uma tirolesa improvisada, já que a ponte havia sido levada pela fúria da água. Mais uma vez, agradeci por não ser época de chuvas fortes.

Os primeiros metros exigiram atenção para não escorregar sobre as folhas molhadas, mas logo descobrimos que o desafio da Ladeira do Império seria mesmo a variação de altitude, o trajeto íngreme e longo; não haveria outros obstáculos, já que em quase toda a sua extensão, a trilha tem algum tipo de pavimento, natural ou construído no passado, para permitir a subida das mulas com a produção agrícola do Vale. Todos subimos bem, eu sempre ficando para trás, emocionada com os detalhes dos presentes que se exibiam por todo o caminho: um orquidário a céu aberto, begônias e quaresmeiras, todas com as cores muito vivas depois da chuva. Pequenos edifícios de teias-de-aranha brilhavam com gotículas de água. Beija-flores, sempre-vivas que já nascem floridas, libélulas e pássaros multicoloridos, vegetação sempre exuberante.

Todas as vezes que olhávamos para trás, mal podíamos acreditar que estávamos mesmo subindo por aquele gigante; lá em baixo, de tão pequenininhas, as casas despareciam no meio do mato e a gente ficava a se perguntar como é que alguém pode morar naquela terra que vista de longe parece intocada. Devia ser metade da subida quando paramos juntos para contemplar o Vale que ficava para trás e vimos ao longe o cânion majestoso do Cachoeirão, que nosso tempo não nos permitiu ver de perto. Flor explica que, não fosse a seca, dali veríamos a queda dágua.



Incrédulos e muito felizes, completamos os 4 quilômetros de subida, deixando para trás o visual indescritível do Vale. O trajeto fora bem menos sofrido do que nos pesadelos da madrugada anterior. Agora seria tudo muito fácil, caminharíamos rápido pelos próximos 12 quilômetros e logo estaríamos em Andaraí. Aham. Doce ilusão! Apesar de ser sempre descida, o caminho torna-se árduo e quase sem atrativos, a não ser a rica flora e a visão distante do Pantanal Marimbus, lá pelos lados de Iraquara. Temos pequenas fontes para abastecer as garrafas, mas nenhum volume de água suficiente para banho.

O calor aumenta, o Sol castiga e descobrimos que não há terreno fácil aqui: uns trechos são de cascalho e pedras soltas, outros sobre grandes rochas que refletem todo o calor que recebem e outros ainda, pisando areia fofa, com pequenos cristais ruidosos sob nossos pés. É nesse trecho que a comunicação interna de todos os corpos entra em crise: os cérebros emitem ordens para continuar a caminhar, porém as pernas, já moles e muito doloridas, não têm condições de obedecer. Os 5 caminhantes se separam, em uma espaçada fila indiana, cada um com o desafio de vencer a batalha interna. Andamos muito, e parece que a cidade também vai arredando, fugindo da gente.

Caminhamos quilômetros enxergando a cidade que não chega nunca e começa a parecer miragem. Por fim, depois de longas 6 horas, chegamos ao letreiro hollywoodiano que nos dá boas vindas a Andaraí, que apesar de poeirenta e pouco colorida, tem para nós, características de oásis: comida boa, suco de mangaba e água gelada. 

De pés descalços, pernas descobertas e sem o peso das mochilas às costas, já no jeep que nos leva de volta a Lençóis, recebo no rosto o vento fresco que vem pela janela. É nesse momento, quando os companheiros já desmaiaram de cansaço, que me emociono de novo ao tentar explicar a mim mesma o que foram esses quatro dias. Todos se superaram. Vencemos os medos de bicho, de águas profundas, de altura. Fomos cúmplices e encorajadores uns dos outros. Tornamo-nos amigos. Aprendemos a admirar o trabalho de um guia, que muito mais do que conhecer uma região e guiar-nos pelo labirinto de trilhas, cumpre com a maior competência as funções de pai, de chef, de médico.

O Vale do Pati é inesquecível: a natureza, as pessoas, a história, os saberes, os sabores... Reabastecemos nossos reservatórios de inspiração. Cansamos o corpo, mas nunca os olhos. O coração está em festa, gratidão transbordando entre lágrimas e sorrisos fáceis. Antes de também pegar no sono, concordo que o poeta tinha toda razão: “tolice é viver a vida assim, sem aventura.”

4 comentários:

  1. Raquel, tenho o mesmo sentimento em relação ao Pati. Adorei o seu relato pois descreve com incrivel riqueza de detalhes. Muito bom mesmo.

    Suely Alvim

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  2. Parabéns pelo relato. Também tive a oportunidade de fazer a travessia do Vale. Fiz do Capão (Bomba) até Andaraí do dia 06 a 10/05/14. Foram momentos inesquecíveis de contemplação da natureza. A mão de Deus em cada detalhe deste incrível Vale. Realmente o melhor guia é o Flor. Ele é D+.
    marceloespanha

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  3. Oi Raquel, adorei teu relato sobre a travessia do Vale do Pati. Vou ir agora em março e vou ter essa incrível experiência!! Achei muito legal o jeito que tu fala no seu guia "Flor", como faço para contata-lo?? Foi por alguma agência??
    Abraços Nicole!!

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  4. Oi, Nicole!

    Os contatos do Flor são flortrekking@hotmail.com e (75) 9823-5836. No facebook, o perfil dele é Florisvaldo Bispo dos Santos. Ele mais fácil conseguir contato com ele por telefone, já que por estar sempre na trilha ele acessa pouco a internet.

    Um abraço e boa trip!

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